sábado, 29 de outubro de 2016

o que revela uma caneta?


Disseram-me, certa vez, que quando a criança completa 1 ano de idade,  é o momento ideal para saber qual será sua futura profissão. Para isso, em frente da criança sentada, deverão ser colocados vários objetos que representam funções ou profissões. Aquilo que ela escolher para brincar naquele momento representará seu futuro como profissional.

Quem sou eu para questionar uma afirmação de cunho popular?  Tantos  exemplos  mostram que a sabedoria antiga superou fundamentos científicos com suas teorias efêmeras.  Além disso, a curiosidade sempre está presente no atento olhar das mamães. Não custa nada fazer o teste...

Movida pela ideia da previsão, rodeei os meus pequeninos com canetas, papéis, brinquedos  e objetos diversos para ver como reagiriam diante deles. As crianças, geralmente, sentem-se atraídas pelo perigo.  Que mal pode haver em um objeto fino, leve e pontiagudo?, Uma caneta escreve cartas, traçam planos, desenha, informa, relata, descreve, opina, mas também fura, cutuca, prende, machuca... 

Continuei na estaca zero, já que QUASE todas as profissões utilizam a caneta em algum momento. A primeira tentativa de preceder o futuro dos meus filhos deixou-me sem resposta definida. Porém, abriu espaço para outra dúvida: e se essa escolha fosse apenas uma pista para mostrar que eles seriam pessoas apaixonadas pela expressão verbal escrita? Só o tempo me traria essa resposta um dia. Só me restava arquivar tal experiência e botar um ponto final nessa ansiedade antes que ela me escravizasse.
Três anos depois, um fato traz à tona minha curiosidade: Danilo encontra o relógio de pulso do pai e o observa atentamente.  Fica intrigado com os movimentos dos ponteiros e com o barulhinho que ouve lá dentro. Abre, então, a caixa de ferramentas do pai, retira o martelo e o utiliza para quebrar o vidro do relógio. Quando ouvi as pancadas provindas lá do quarto, corri e me deparei com a cena. No primeiro momento, minha reação foi de surpresa e indignação e,  sem hesitar, questionei sua atitude e falei que não era certo estragar as coisas do pai. Ele respondeu-me  que fez aquilo porque queria ver como funcionava por dentro. Fiquei emocionada e sem palavras. Abracei o meu (talvez) futuro engenheiro.

As folhas dos anos mudavam de páginas de forma rápida e silenciosa...

Danilo antes de aprender a ler e escrever, gostava de desenhar e fazia isso muito bem. Seria um futuro desenhista, projetista, arquiteto, artista plástico? Também era dotado de talentos musicais: desde pequeno tinha muita habilidade em lidar com os brinquedos que reproduziam sons: pianinhos, violões, flautas; na adolescência continuava apaixonado pelos instrumentos musicais. Ganhou, então,  um violão da avó paterna e ingressou no curso para aperfeiçoamento. Depois, junto a outros amigos com gostos afins, formou um grupo de rock no qual ele era o guitarrista. Concomitante a esse gosto artístico, ele interessou-se também por artes marciais e estudou Kung Fu durante alguns anos, chegando à faixa preta. Com competências distintas:  na arte, na música e na luta marcial, ficava difícil antecipar que caminho ele seguiria para definir o seu amanhã. Mas, pelo jeito,  ele estava apenas exercitando alguns dos seus domínios,  visto que no Ensino Médio, optou pela eletrônica e seguiu uma linha paralela na faculdade: cursou engenharia elétrica e formou-se em 2010. Penso que agora o meu querido e dedicado engenheiro já deve ter descoberto como funciona o mecanismo interno de um relógio de pulso.

A Pequena Notável ou Grande Miúda, denominações que costumo definir a Patrícia, é dotada de uma sensibilidade aguçada e características peculiares que vão além do meu entendimento. Desde pequena demonstrou que era determinada e tinha personalidade marcante.  Aprendeu a falar antes de completar um ano e adorava dialogar com outras pessoas, principalmente com os idosos. Quando eu percebia que ela não estava dentro de casa, sabia exatamente onde encontrá-la:  na casa dos avós paternos conversando com eles e com uma outra senhora que morava junto (d. Cinira) ou com outros idosos que moravam vizinhos. Uma menina com ideias maduras encantam as pessoas. Tinha argumento para tudo e sabia defendê-los com  maestria impecável. Cheguei a pensar que seria uma advogada por gostar tanto de argumentar e defender o que considerava correto. Mas essa propriedade de escutar, compreender e de ajudar o outro com palavras não se limita a área do Direito, vai mais além. Um dia, quando questionada sobre sua profissão futura, ela afirmou que queria ser psicóloga.  De certa forma, isso justificava sua destreza com as palavras e a interação com as pessoas.  

Na escola, as redações continham ideias maduras e bem fundamentadas e isso causava um transtorno em sala de aula porque a professora se recusava a dar nota,  alegando que seria impossível uma criança de 8 a 10 anos possuir uma visão crítica naquele nível. Consciente de sua capacidade de expressão, minha pequena criança resolveu sozinha esse dilema: pediu que a professora selecionasse qualquer tema para uma produção textual que seria feita naquele momento e em sua frente e, assim, pode provar do que era capaz. Desafios nunca assustaram essa menina corajosa com talentos especialmente voltados para a área de humanas.

Patrícia acompanhava as minhas correções de provas ou redações dos meus alunos e, de acordo com as  respectivas notas, disfarçadamente,  ela desenhava carinhas sérias, felizes ou tristes nas folhas deles. Isso causava reações adversas em sala de aula e eu tinha que me justificar perante eles. Eu teria em casa uma futura professora?  Quem sabe...

Ela cursou Ensino Médio tradicional e, ao mesmo tempo, fez curso técnico voltado para a área de edificações. Desenvolveu, a partir daí um gosto pela arquitetura e urbanismo. Apaixonou-se, também, por projetos sociais ou associados ao meio ambiente e ecologia. Saiu de casa e foi fazer faculdade pública em outra cidade a quilômetros de distância durante cinco anos. Voltou formada a minha geógrafa. No início da carreira, chegou a lecionar durante um ano e meio, pois seu curso a habilitava tanto para a licenciatura quanto ao bacharelado. Na primeira oportunidade de exercer a segunda opção, ela não hesitou e largou as aulas para atuar como geógrafa em empresas. Foi convidada a trabalhar em outro estado (Pará) exercendo seus conhecimentos no estudo do ambiente para a construção de uma nova hidrelétrica no rio Xingu, em Altamira. Embora eu tenha ficado extremamente preocupada com essa viagem longa e a estadia durante vários meses, eu acatei a decisão dela e dei o apoio necessário. Quando terminou o trabalho lá, foi transferida para São Paulo e voltou a ficar perto de mim, o que me retomou o fôlego.

Reconheço que aquela caneta,  que fora o objeto escolhido pelos meus dois filhos, não deixou de ser uma referência às suas formações profissionais: hoje, enquanto ele assina documentos, fecha contratos  e traça projetos para serem desenvolvidos; ela esquematiza mapas, estuda as condições e possibilidades ligadas à terra e,  nas horas vagas, discorre suas ideias  em verso ou prosa através da legítima veia poética que possui naturalmente...


(Zizi Cassemiro , 10/09/2016)

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