Poema e poesia juntos: o condutor de emoções
"Se o poema é um objeto empírico e se a poesia é uma substância imaterial, é que o primeiro tem uma existência concreta e a segunda não. Ou seja: o poema, depois de criado, existe per si, em si mesmo, ao alcance de qualquer leitor, mas a poesia só existe em outro ser: primariamente, naqueles onde ela se encrava e se manifesta de modo originário, oferecendo-se à percepção objetiva de qualquer indivíduo; secundariamente, no espírito do indivíduo que a capta desses seres e tenta (ou não) objetivá-la num poema; terciariamente, no próprio poema resultante desse trabalho objetivador do indivíduo-poeta." 2 (LYRA, Pedro. Conceito de Poesia. São Paulo: Ática, 1986.)
Poesia e poema estão tão intrinsicamente ligados que chegam a ser confundidos. O poema é o palco perfeito para a exibição da poesia. No texto poético o eu lírico é mais livre para criar e expor sua visão, explorando os diversos recursos: estilísticos, linguísticos, semânticos. Em um poema as regras são mais flexíveis do que em outros gêneros textuais, a ênfase pode ser dada ao tema, à forma, à linguagem, etc. Tudo vai depender dos diversos objetivos de seu autor, como: emocionar, brincar com as palavras, refletir ou levar à reflexão, criticar, satirizar, relatar um fato, ou até mesmo desabafar. A poesia é a mais profunda forma de expressão, tanto oral quanto escrita enquanto que o poema é o canal que permite o seu trânsito.
A preferência por esse gênero textual foi fundamental na escolha de um texto no qual eu pudesse tecer uma breve análise do seu conteúdo e forma. Entretanto, tantas criações poéticas despertam minha admiração e não é nada fácil decidir entre elas uma que melhor represente nessa categoria. Determinei, então, um critério: teria que ser algo simples e bonito e que, ao mesmo tempo, tocasse bem a fundo minha sensibilidade, envolvendo-me completamente pelo teor das palavras que o compõem.
E assim, imaginei um túnel do tempo e fui buscar nas raízes a criação literária. Quem sabe até a Idade Média? Época dos trovadores, menestréis, jograis que transformavam a poesia em música. As canções daquela época costumavam ter versos curtos (redondilha menor) e estrofes mais longas (sextilhas, oitavas). Se essa tradição (praticamente oral) tivesse sido extinta com o passar dos anos, seria apenas mais um fato histórico a ser estudado, afinal estamos há mais de setecentos anos depois, e a tecnologia está aí como prova maior dessa diferença temporal. É interessante observar as tradições que o tempo não consegue abolir. Refiro-me a criação literária a partir da tradição oral que teve suas origens em tempos bem remotos. Foi trazida ao Brasil pelos portugueses e aqui encontrou “solo fértil” sobrevivendo, principalmente, nas camadas populares do nosso país na região nordeste sob a forma de cordéis, emboladas, repentes, etc.
Dentre tantas criações dessa natureza, selecionei um poema que foi elaborado por uma pessoa simples, semi-analfabeta, mas com muito conhecimento na arte de compor versos. Possuía naturalmente uma sensibilidade e capacidade criadora muito aguçada e uma memória invejável.
Refiro-me a Antônio Gonçalves da Silva, conhecido como Patativa do Assaré, nascido no Ceará, foi um poeta popular, compositor e improvisador muito valorizado por aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer sua vasta criação literária. Foi um dos mais importantes representantes da cultura popular nordestina Estudou apenas seis meses quando criança e aprendeu a ler. A partir daí, movido pela admiração e interesse, procurou conhecer os recursos formais do poema (ou poesia) e ler as obras de: Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Olavo Bilac, Guimarães Passos, Camões (leu Os Lusíadas) e a prosa de Coelho Neto. Não teve, portanto uma formação acadêmica, mas era mestre na arte de versejar e conhecia as estruturas poéticas que usou em suas composições. Seu talento foi reconhecido até pelas universidades que lhe concederam o título de “Doutor Honoris”. Como afirmou Luzanira Rego, a partir de uma visita à casa do poeta: “Patativa é homem que sabe ler, de muitas leituras e informações sobre o que acontece no mundo” Entre suas criações, destaca-se um poema que fala sobre a seca: A Triste Partida: elaborado com versos em redondilha menor, composto por 19 estrofes em oitavas, as rimas seguem uma determinada sequência:, ABBCBDDC; a linguagem é típica da região, representando o homem do sertão. O poema é composto por cinco partes: a espera pela chuva(estrofes: I á V que narram os meses de expectativas, simpatias, apelo religioso e esperanças que chova); a decisão de sair da terra natal(estrofes:VI à VII, narra a conversa com a família a respeito da decisão de irem embora.); os preparativos para a viagem(estrofe: VIII, narra a venda dos pequenos bens que possuem); a triste partida(estrofes IX à XIV, narra a saída em um caminhão, provavelmente um pau-de-arara e a reação dos filhos que lamentam por deixar os animais, as plantas e os brinquedos); a vida no Sul(estrofes XV à XIX: narra a chegada em São Paulo, a busca por um trabalho, as explorações que sofrem, a difícil adaptação, as lembranças da terra natal os fazem sofrer, a falta de perspectiva da volta).
O poema foi musicado por Luiz Gonzaga e sofreu algumas alterações da sua forma original como: a cada quatro versos há um refrão em tom de dor e lamento: “Meu Deus, meu Deus”, seguido por uma onomatopéia: “Ai, ai, ai, ai” e a substituição de algumas palavras(sem alteração de sentido), e manteve o linguajar regional.
Referindo-se ao êxodo rural como conseqüência da seca, o poema conta a trajetória de uma família que se vê obrigada a deixar tudo (casa, animais, objetos e pertences) e buscar a sobrevivência em outro estado (no caso, São Paulo). Há trechos narrativos que intercalam com os discursos diretos entre os personagens que lamentam suas perdas com a partida. Além disso, mesmo estando em 3ª pessoa, nota-se, claramente, a subjetividade do narrador em trechos em que transparece suas reflexões e emoções acerca do tema, numa da linguagem carregada de figuras de linguagem, destacando-se, por exemplo: metáforas(“buzina a cigarra”,”nota esperança/com gosto se agarra”, “a seca terrive/que tudo devora”); prosopopéias(“fome feroz”, “alegre Natá”, lhe bota pra fora/da terra natá”); comparação (“Vivê como escravo”); hipérboles(“partido de pena”, “de pena e saudade/papai, sei que morro”); ironia(feliz fazendero); antítese(“vivê ou morrê”); gradação(“tão forte, tão bravo”) e outros apelos conotativos.
Outro detalhe que denuncia a subjetividade do narrador: os versos são repletos de adjetivos, a começar pelo próprio título “A Triste Partida”. Seguem outros como: “seco Nordeste”, “fome feroz”, “alegre natá”, “santo querido”, “triste dia”, “feliz fazendero”, “pobre cachorro”, “céu lindo e azul”, “e o pobre, acanhado”, “cara estranha”, “tão forte, tão bravo”, etc. No final do poema narrativo, o narrador conclui utilizando versos opinativos que denunciam sua subjetividade: “Faz pena o nortista/ tão forte,tão bravo,/vivê como escravo/ nas terras do su/” .
Os versos em redondilha menor conferem ao poema um ritmo com musicalidade que é reforçado por uma organizada disposição de rimas no decorrer das estrofes. Quanto ao valor dessas rimas, o poeta soube equilibrá-las: algumas são pobres (“comê/morrê”, “pensando/rodando”, “Nordeste/peste”, “cigarra/barra”, etc); outras ricas (“consigo/castigo”, “boa/garoa”, “morro/cachorro”, “pena/acena”, etc)
O poema-canção de Patativa do Assaré vai além de uma narrativa em forma de cordel distribuído em estrofes e versos; é o registro fiel da dor e lamento de um povo que sofre devido a falta de chuva e que se vê obrigado a dar outro rumo à sua vida junto à família, submetendo-se, em terras estranhas, a situações diversas de exploração, humilhação, descaso. O apego à terra natal é tão forte que a saudade (como que personificada) torna-se sua companheira constante e , assim, ele não consegue superar o sentimento de tristeza por estar longe e não poder voltar. Embora não exista esperança de melhora, ele é forte e tem muita fibra, por isso não desiste de lutar. O conteúdo do poema não procura apenas relatar uma situação vivida por uma família de nordestinos que sofrem com a seca, ele faz denúncias sociais. Um tipo de protesto pela impossibilidade de uma vida digna tanto na terra natal como em terras estranhas.
Existem muitos poemas musicados como: Asa Branca, Súplica Cearense e outros que falam sobre a seca, porém em A Triste Partida a representação é tão real que emociona quem lê ou escuta, principalmente quem se identifica com o tema. Vale a pena conhecer essa rica criação e compartilhar dos sentimentos que a tornaram o hino do Nordeste.
O poeta fez um trabalho artesanal com as palavras; ele soube valorizar e manter o esquema estrutural característico desse tipo de gênero textual, sem se esquecer da poesia contida nas palavras enquanto desenvolve sua narrativa. Quando a poesia e o poema se fundem, está criada a obra de arte digna de ser conhecida por todos e apreciada por aqueles cuja sensibilidade lhes permite reconhecer o valor e a riqueza da nossa cultura e admitir que sabedoria e criatividade estão mais próximas do que pensamos, na natural simplicidade da fala do povo.
A seguir, a letra do referido poema que foi musicado pelo cantor Luiz Gonzaga:
A Triste Partida
Patativa do Assaré
Meu Deus, meu Deus
Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós,
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
Ai, ai, ai, ai
A treze do mês
Ele fez experiênça
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Meu Deus, meu Deus
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
Ai, ai, ai, ai
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Meu Deus, meu Deus
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois barra não tem
Ai, ai, ai, ai
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
Meu Deus, meu Deus
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"
Ai, ai, ai, ai
Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Sinhô São José
Meu Deus, meu Deus
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
Ai, ai, ai, ai
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Meu Deus, meu Deus
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nóis vamo a São Paulo
Viver ou morrer
Ai, ai, ai, ai
Nóis vamo a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Meu Deus, meu Deus
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Ai pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
Ai, ai, ai, ai
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Meu Deus, meu Deus
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
Ai, ai, ai, ai
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
Meu Deus, meu Deus
A seca terrívi
Que tudo devora
Ai,lhe bota pra fora
Da terra natal
Ai, ai, ai, ai
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Meu Deus, meu Deus
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
Ai, ai, ai, ai
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Meu Deus, meu Deus
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Com seu filho choroso
Iscrama a dizer
Ai, ai, ai, ai
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
Meu Deus, meu Deus
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
Ai, ai, ai, ai
E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
Ai, ai, ai, ai
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo e azul
Meu Deus, meu Deus
O pai, pesaroso
Nos fio pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul
Ai, ai, ai, ai
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Percura um patrão
Meu Deus, meu Deus
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
Ai, ai, ai, ai
Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Meu Deus, meu Deus
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
Ai, ai, ai, ai
Se arguma notíça
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Meu Deus, meu Deus
Lhe bate no peito
Saudade de móio
E as água nos óio
Começa a cair
Ai, ai, ai, ai
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
Meu Deus, meu Deus
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
Ai, ai, ai, ai
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposto à garoa
A lama e o paú
Meu Deus, meu Deus
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai
ASSARÉ, Patativa do. Disponível em:
http://www.tanto.com.br/Patativa.htm Acesso em 06 Dez. 2011.
LYRA, Pedro. Conceito de Poesia. São Paulo: Ática, 1986.)
GONZAGA, Luiz. Letras mus.br. Disponível em:
ASSARÉ, Patativa do. Mundo Cordel. Disponível em:
GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. O Êxodo Rural no Cancioneiro Popular. Triste Partida, de Patativa do Assaré. Professor e Pesquisador da Universidade da Amazônia. Pesquisador Associado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. P.01-15
Zizi 14/12/2011